Haruki Murakami e a Cidade Murada Dentro de Nós.

                                            Haruki Murakami e a Cidade Murada Dentro de Nós.

                        Entre a Persona e a Sombra: uma leitura de Murakami

Bem nessa minha última semana de férias, antes de eu retornar à universidade, terminei de ler um livro de Murakami. Talvez ele seja meu escritor favorito. Não que eu seja um onívoro por leitura, mas tem me ajudado a me desligar do mundo. Eu não sei o porquê, mas gosto de histórias com uma narrativa onírica. Murakami é um deleite para quem gosta dessas narrativas, e O Fim do Mundo e o Impiedoso País das Maravilhas é um exemplo perfeito.



Vamos ao enredo. O livro narra duas histórias, como o título já entrega, em 40 capítulos alternados, como Murakami faria depois com Kafka à Beira-Mar. A princípio, fica meio confuso identificar qual é o Fim do Mundo e qual é o Impiedoso País das Maravilhas, mas até o final fica bem claro. O livro traz até um mapa do País das Maravilhas.


Em uma narrativa, acompanhamos a história de um programador que se encontra com um velho cientista e sua neta, que estão desenvolvendo uma pesquisa secreta. Na outra, um jovem chega a uma cidade murada com o trabalho de ler sonhos em crânios de unicórnios — uma cidade onde seus habitantes não têm corações, sentimentos ou sombras.


É realmente um livro bem Murakami, não só pela história fantástica, mas também pelos elementos recorrentes em praticamente todas as suas obras. Entre eles, está a forma como narra o cotidiano banal dos personagens, como suas refeições. Acredito que essa seja uma das grandes qualidades de Murakami: sempre que leio seus livros, fico com fome. A maneira como descreve o preparo e a degustação pelos personagens é tão real que parece que vão me servir um prato também. Além disso, há as referências literárias, musicais e cinematográficas. Admiro muito a capacidade que ele tem de escrever histórias com temas complexos, mas de uma forma simples e gostosa de ler, sem se tornar enfadonho.


Outro aspecto que me atrai na literatura de Murakami é sua utilização de elementos borgeanos na criação de mundos. Isso faz com que nós, leitores, realmente acreditemos que é possível ler sonhos no crânio de um unicórnio ou que cidades possam existir dentro de uma cabeça.


Como em Caçando Carneiros, os personagens deste livro não têm nome. Acredito que ele utilize esse recurso para refletir sobre a despersonalização. Conforme narra as histórias, percebemos que são homens solitários, sem grande propósito na vida, que apenas existem. São homens muito passivos diante do que acontece com eles — tanto aqui quanto em outros livros, como em Crônicas de um Pássaro de Corda. Nesse romance, que possui uma atmosfera bem kafkiana, Toru Okada, o protagonista, é irritantemente passivo a tudo que lhe acontece. Ele está desempregado, seu casamento é frio e Toru parece não se importar, sem nenhum prazer pela vida. Nesse livro, Murakami retrata algo semelhante com os dois protagonistas.


A partir daqui, darei spoilers da minha interpretação. Ao meu ver, Murakami sempre deixa muitas perguntas, e quase nunca traz respostas diretas.


O Impiedoso País das Maravilhas — essa cidade murada — está dentro da cabeça, em algum lugar do cérebro do homem sem nome que vive no Fim do Mundo. Parece confuso, mas acredito que seja isso.


Aqui entra a psicologia analítica de Jung, especialmente a divisão entre consciente e inconsciente. Graças às aulas de economia comportamental, tenho me interessado cada vez mais por psicologia.


Na psicologia de Jung, a psique se divide em duas estruturas: o inconsciente pessoal e o coletivo. O pessoal é o mais familiar: o “depósito” de tudo o que já foi consciente, mas foi reprimido, esquecido ou relegado às profundezas da mente por ser inaceitável para a consciência. Nele residem nossos complexos — grupos de ideias, pensamentos e lembranças carregadas de emoção.


O coletivo é uma camada mais profunda da psique, herdada de nossos ancestrais, e contém as experiências psíquicas de toda a humanidade. É o lar dos arquétipos — padrões inatos de comportamento e imagem, como o Herói, a Mãe, a Sombra e o Anima/Animus. Esses arquétipos não são ideias em si, mas caminhos virtuais que se manifestam em imagens e símbolos universais, presentes em mitos, religiões e sonhos de todas as culturas.


Jung argumenta que a assimilação desses conteúdos do inconsciente coletivo pela consciência é essencial para o amadurecimento psicológico, mas é um processo perigoso que pode levar à “inflação” da personalidade, quando o eu se identifica de forma excessiva com um arquétipo. No livro O Eu e o Inconsciente, Jung explica que a persona é a “máscara” social que usamos para nos adaptar ao mundo e desempenhar nossos papéis sociais. É a imagem que projetamos para o exterior e que nos permite funcionar na sociedade. Já o lado oposto da persona é a sombra, que representa tudo o que o eu não aceita sobre si mesmo e reprime. É o lado escuro da personalidade, onde residem nossos traços indesejados, impulsos e fantasias.


Para Jung, a integração da sombra é um passo crucial no processo de individuação. Ignorá-la não a faz desaparecer; pelo contrário, ela se projeta nos outros, gerando conflitos e incompreensão.


No livro, essa questão junguiana fica bem clara. No Fim do Mundo, o personagem assimila totalmente sua persona — não de forma natural, mas forçada, já que é fruto de uma experiência científica. Ele é o único sobrevivente. Sua sombra, que está no Impiedoso País das Maravilhas (tanto literal quanto metaforicamente), resolve permanecer na cidade murada, pois lá poderia ter uma vida feliz. No Fim do Mundo, ele morre.


Mais do que uma narrativa fantástica, esta obra de Murakami é um convite a olhar para nossas próprias sombras e perguntar: o que sacrificamos em troca de uma vida “feliz”?

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